“CANTICO NEGRO” por José Régio

bichos_estranhos_filmes_f_011

CÂNTICO NEGRO

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: “Vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
– Sei que não vou por aí!

Esperança

pizdaus_plantinha_muro1

Esperança

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente,
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.

Almada Negreiros

“Lost weekend” por Rui Pires Cabral

Lost weekend

Um dia é maior do que a soma
das suas horas
, às vezes comporta
todos os invernos e as estações assombradas
pelos prejuízos do prazer.

Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica?
A cidade não foi feita para as nossas pretensões,
está apenas alastrada por dentro de nós
, crispação
de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.

Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite,
é a própria razão que nos ilumina os atalhos
para o esquecimento
. Um ano inteiro não será suficiente
para tudo o que não nos acontece.

Agora sim um poema de Rui Pires de Cabral… Este poema tem a particularidade de ter três frases que acho simplesmente geniais e que (embora por outras palavras) já me atravessaram mais do que uma um vez o pensamento (ou o espirito), são essas as frases marcadas em itálico. Espero que o apreciem tanto como eu.

“A MOSCA DO SERVIÇO DE URGÊNCIA” por A. M. Pires Cabral

A MOSCA DO SERVIÇO DE URGÊNCIA

A velha está sentada na sala de espera.
Chegou amparada pela filha, que a depositou ali
enquanto trata dos papéis. A aflição
deve ter sido tão súbita e imperiosa
que a velha vem descomposta,
não houve tempo para atender a pudores.
Perdeu algures um chinelo.

Está sentada, muito branca, e parece
mascar as dores com as gengivas nuas.

Tem a morte pousada na cara, sob a forma
de uma mosca insistente e de ar atarefado.
Não tem forças para a sacudir.
A mosca aproxima-se da boca, depois parece
interessar-se pelo nariz. Delicia-se
com o muco ao canto do olho, como a criança
que come a ocultas um gelado interdito.
É como se estivesse em casa e percorresse
os aposentos ao sabor dos afazeres.
Cansada do rosto, levanta voo
e vai pousar, desta feita, numa mão.
Mas breve volta atrás, como se se tivesse
esquecido ali de alguma coisa,
e demora-se um pouco a tentar lembrar o quê.

Esfrega uma na outra as patas dianteiras,
celebrando a vitória que logo virá.

A velha já nem se dá conta
desse penúltimo escárnio da morte.
Está visivelmente madura para ela,
pronta a entregar-lhe os destroços do corpo.

Consumada a posse daquele território,
a mosca vai no seu voo fortuito
em busca de mais carne a requerer.
Há dezenas de doentes na sala.
Apalpa-os um por um, como se faz aos figos,
para saber qual deve ser comido
em primeiro lugar.

O mais certo é que acabe – mais dia, menos dia –
por devorá-los todos.

[Por A. M. Pires Cabral in As Têmporas da Cinza, Cotovia]

Eugénio de Andrade

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

por Eugénio de Andrade
Imagem: “O Grito” de Edvard Munch

“Fico na terra” por Eugénio de Andrade

Todos os anos penso em deixar este poema no dia dos meus anos aqui no blog e todos os anos não tenho tempo para isso…

Fica então (com um delay desde dia 22 de Junho) este poema que tanto me intrigou, porque apesar de Eugénio de Andrade não ter nascido a 22 de Junho e não perceber qual a sua ligação com esta data a verdade é que o poema faz todo sentido para mim, palavrinha por palavrinha…

Fico na terra

Fico na terra toda,
natural e sadio,
-como água liberta
no sulco dum rio.

Mãos fincadas no chão;
boca larga, distendida
num rio que desconhece
sentidos falsos da vida.

Fico estendido ao sol,
inteiro e consciente
que passei a ser terra
e deixei de ser gente.

Hoje, vinte e dois de Junho,
alguma coisa nasceu
neste pedaço de terra
que sou eu.

Eugénio de Andrade

A imagem, como não poderia deixar de ser, é da minha pintora preferida, Georgia O’Keeffe, quadros que me fazem sempre sentir como se estivesse a ver o espelho do meu interior…

“Do sentimento trágico da vida” por Natália Correia

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
é parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.

Natália Correia

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!

Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.

Bocage

Concurso Literário Municipal Lisboa à Letra

“O Departamento de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Lisboa convida os jovens entre os 15 e os 30 anos, que residam, estudem ou trabalhem no município de Lisboa, a participar na sexta edição do Concurso Literário Municipal Lisboa à Letra, cujo prazo de inscrições e de entrega de trabalhos decorre de 14 de Abril a 31 de Maio.

Esta é uma iniciativa anual que tem como principais objectivos os de incentivar os jovens à leitura e à escrita criativa, tendo como temática de fundo a cidade de Lisboa.

As inscrições e a entrega de trabalhos poderão ser realizadas directamente nos espaços Juventude@Lisboa, Loja 2112, Amoreiras Shopping Center, Avenida Duarte Pacheco, 1070-103 Lisboa, dias úteis entre as 10h00 e as 22h00, fins-de-semana e feriados entre as 14h00 e as 20H00; Juventude@Lisboa, Edifício da Câmara Municipal de Lisboa, Campo Grande nº 25, piso 0, 1749-099 Lisboa, dias úteis entre as 10h00 e as 13h00 e entre as 15h00 e as 18h00; Ou por correio, acompanhados por aviso de recepção, para a Divisão de Apoio Juvenil, Câmara Municipal de Lisboa, nº 27, 10º Bloco E, 1749-099 Lisboa.

Os candidatos deverão consultar o regulamento do concurso antes de realizarem as inscrições cuja ficha se encontra disponível aqui.

Para outras informações podem contactar:
Divisão de Apoio Juvenil, Tel. 21 798 81 79, dej.daj@cm-lisboa.pt;
Juventude@Lisboa do Amoreiras Shopping Center, Tel. 21 385 74 86, amoreiras@cm-lisboa.pt;
Juventude@Lisboa, Edifício da Câmara Municipal de Lisboa do Campo Grande, Tel. 21 798 93 70, campogrande@cm-lisboa.pt .”

In LxJovem

Eu concorri o ano passado na categoria de poesia e (para variar) não ganhei… de qualquer maneira aqui fica o aviso!

25 de Abril

Trova do Vento que Passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Por Manuel Alegre

« Older entries